XII Encontro Nacional de Filosofia Clínica - Educação e Saúde

Cuiabá, 3 a 6 de junho de 2010

 

Espacialidade, o lugar do sujeito

José Mauricio de Carvalho

Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São João Del Rei

 

 

I. Considerações iniciais

Este trabalho examina o tópico 14 da Estrutura de Pensamento (EP), lugar da malha intelectiva que traduz as formas do sujeito viver sua localização no espaço. Através da espacialidade espera-se entender como a pessoa se situa em sua estrutura intelectiva. A pessoa pode se voltar para o que já vivenciou ou pode buscar no futuro um alento para suas dificuldades atuais. Ela pode trazer para si uma situação de outrem, ou pode transcender no tempo e espaço e assim se posicionar diante da experiência vivida.

Pretende-se demonstrar que o tópico representa um aspecto fundamental do modo de ser do homem, abordado pelos fenomenólogos como ser em situação. O propósito deste reconhecimento é fortalecer os vínculos da Filosofia Clínica com a Escola Fenomenológica. O método fenomenológico descreve a essência das experiências íntimas, por isto, mesmo sendo uma ciência eidética concreta, ajuda a entender os fatos psicológicos. Fica desta forma estabelecido o vínculo entre as questões psicológicas tratadas na Filosofia Clínica e o modo de ser do homem, forma da escola fenomenológica descrever a existência humana.

Os assuntos examinados a seguir são: a espacialidade humana segundo a escola fenomenológica, a singularidade da espacialidade intelectual comparada com a presença corporal, a importância da linguagem como instrumento da espacialidade intelectual e os modos de manifestação da espacialidade intelectual segundo a Filosofia Clínica.

 

II. Espacialidade humana

A relação com o mundo é percebida pela localização de nosso corpo no espaço. O corpo nos situa num determinado lugar e faz ver o mundo de forma singular. Tudo seria diferente para o homem se a mão não tivesse dedos, se os pulmões não retirassem o oxigênio do ar ou se não tivéssemos pés para nos locomover e nos levar de um lado para outro. Porque as coisas são seguras pelos dedos, o ar sentido pelos pulmões e narinas, o chão tocado pelos pés é que o mundo nos parece do modo que é. Este significado fenomenológico de nossa existência é o tema do capítulo filosofia do corpo publicado em Passeando pela vida. Como exemplo transcrevo o que diz Lúcio Packter sobre o nariz (1999): “o nariz seria maior, mas havia o exemplo exagerado dos elefantes” (p. 52). É porque o nariz é como é que o mundo nos tem este cheiro. O nariz permite sentir os odores do mundo e por ele entra o ar para os pulmões. Nossa percepção do mundo seria diversa se tivéssemos o nariz do elefante ou do cachorro, ou muito maior que o atual, ou muito mais apurado para o cheiro. O modo como nos localizamos no espaço depende de nosso corpo. No entanto, não estamos no espaço só através do corpo. Temos uma forma intelectual de nos situar nele. Este é o aspecto que Lúcio Packter busca captar através do tópico 14 da Estrutura de Pensamento (EP).

 

III. Espacialidade e situação

A escola fenomenológica refere-se sempre ao homem no mundo, isto é, como sujeito situado e não vivendo uma realidade abstrata à parte do que o envolve. Depois das lições da fenomenologia “não é possível tratar homem e mundo, ou o velho problema da realidade, separando um do outro” (Carvalho, 2007. p. 16).

Pela espacialidade, entendida como realidade corporal, o homem se localiza num certo ponto do espaço e tempo. A espacialidade intelectiva ou do eu é diferente da espacialidade corporal. Encontramos, ordinariamente, duas formas de tratar a espacialidade do eu entre os fenomenólogos. De um lado, há aqueles como o existencialista Gabriel Marcel que consideram impossível pensar um eu desmaterializado, pois o eu apenas se encontra em um corpo. Neste caso entre o corpo e o eu não há uma relação instrumental, o corpo não é algo que envolve o eu. O corpo é o ponto de inserção no mundo e o homem é um ser encarnado vivendo em uma situação. Isto significa que tudo quanto existe na natureza ou na cultura acha-se em relação com o corpo e este situa o sujeito no mundo.

O estar em relação inseparável com o mundo é uma conclusão comum entre os fenomenólogos. No entanto, filósofos como W. Luijpen percebem que a espacialidade corporal que situa o sujeito no aqui e agora é realidade diferente da espacialidade representada na malha intelectual. Esta última propicia ao sujeito transcender o espaço e o tempo em que o corpo está. Esta compreensão tornou-se marca da filosofia raciovitalista de José Ortega y Gasset que ao dizer que o sujeito é ele e sua circunstância cuidou de explicar que da circunstância fazem parte o corpo e tudo o mais que envolve o eu, desde as emoções até a família, a cidade, o momento histórico, a cultura, enfim.

A forma de pensar a aderência corporal ao mundo é fundamental para entender a existência humana, mas ela não esgota todo o sentido da existência histórica. As duas formas diversas de considerar a espacialidade divide os fenomenólogos que estão juntos quando se trata de pensar a inseparabilidade entre o mundo e o sujeito. A discordância está, portanto, na maneira como a inseparabilidade é vivida.

A Filosofia Clínica quando fala da espacialidade retratada na malha intelectiva está mais próxima de Luijpen e Ortega y Gasset do que da forma concebida pelo existencialismo cristão de Gabriel Marcel.

 

IV. Espacialidade e linguagem

A nossa presença no mundo não se faz só pelo corpo, mas também pela forma de pensar. Assim ocorre porque a relação com o mundo pelo corpo e pelo pensamento são coisas diferentes, mas ambas fazem parte do modo humano de ser. Diz Luijpen (1973): “Não se pode (...) afirmar nenhum ser fora de sua própria presença como sujeito existente; com outras palavras, o homem jamais afirma alguma coisa que não seja o ser-para-o-homem” (p. 66). Ele o afirma porque a palavra lhe permite passar da espacialidade física para o pensamento. A linguagem e o pensamento estão inseparavelmente vinculados e permitem que a espacialidade física seja traduzida pelo pensamento. Assim a presença física adquire significado no pensamento, como afirma o mesmo fenomenólogo: “O sujeito como cogito, existente, é, entretanto o deixar-ser do sentido, o acabamento da desocultação dele. Mas visto que o cogito é também primordialmente palavra, cumpre dizer-se que o falar faz o sentido ser, que a fala consuma a verdade do sentido” (idem, p. 67).

O fato de falar é um aspecto fundamental da existência humana. Através da linguagem o homem dá sentido ao que está a sua volta. Dar sentido não é uma criação solipista, teoria para a qual só existo eu e todos os outros entes são idéias minhas, mas de troca com o entorno que me envolve. Este aspecto da relação entre o existente e o mundo levou autores como Martin Heidegger a dizer que o homem não é dono do sentido, mas o pastor, o guardador do ser. Através do pensamento o ser se mostra e adquire sentido problemático. Parece estranha a afirmação fenomenológica de que sem sujeito o mundo não existe, mas isto é diferente de dizer que não há nada em volta do homem, o que há, segundo os fenomenólogos, é um mundo-para-o-sujeito. A conclusão que daí tiramos é muito importante para o filósofo clínico, pois as palavras não apenas soam, elas, pela linguagem, nos situam no mundo pelo sentido que damos aos fenômenos. Isto é, as palavras traduzem a posição intelectiva do sujeito captada espacialidade enquanto elemento da Estrutura de Pensamento (EP).

 

V. Espacialidade na Filosofia Clínica

O tópico 14 da Estrutura de Pensamento (EP) é a espacialidade. Para a Filosofia Clínica, conforme ensina Lúcio Packter no Caderno D, espacialidade é “a posição intelectiva da pessoa. Teu corpo está aí, ele pergunta, mas onde estão os conceitos da sua malha intelectiva” (p. 14). Com esta pergunta ele quer dizer que os conceitos da malha intelectiva podem não estar exatamente na mesma posição de tempo e de espaço que o corpo está. Como a pessoa pode se localizar no espaço intelectivo? Lúcio Packter resume as formas desta posição explicando que ela pode trazer um assunto qualquer para sua intimidade e tentar resolvê-lo em seu íntimo. Neste caso o que ocorre fora do sujeito é transposto para o seu universo interior num fenômeno denominado inversão. Michele Paulo em Compêndio de Filosofia Clínica (2001) esclarece que inversão é o processo de trazer “os outros ao seu mundo existencial” (p. 55/6), ao espaço íntimo do sujeito. O contrário também ocorre, o sujeito pode ir até o outro ou até algum objeto num fenômeno denominado recíproca de inversão. Quando este processo de transposição para fora do sujeito assume entes que estão ao alcance dos sentidos, chamamos este fato de deslocamento curto e, diversamente, denominamos deslocamento longo quando a perspectiva para onde o sujeito se transporta distancia-se de seus dados sensoriais, conforme comentam Dantas, Clauss e Faraday em Terapia em Filosofia Clínica (2001).

Quando consideramos, escutando as lições da fenomenologia, que não há mundo sem o sujeito que o pensa, percebemos que há muitos mundos humanos construídos de maneira particular, conforme cada pessoa se relaciona com seu entorno. A filosofia clínica mostra que é a história de vida a principal variável que faz as pessoas perceberem o entorno a si de modo diverso e de se relacionar com ele de forma particular por conta de sua localização intelectiva. Uma mesma situação parece diferente se o sujeito pensa sobre a casa que habitou desde quando nasceu no seu íntimo ou o faz colocando-se na pele de outra pessoa como de um corretor de imóveis. A forma diferente de se situar no espaço mais em si ou mais no outro indica que o homem vive campos pragmáticos distintos que se formam por conta de sua corporalidade e história de vida. É o fato de termos braços e pernas, um estômago que se enche de alimentos, pés que sobem e descem escadas, um nariz que sente o cheiro da terra molhada, mas principalmente uma história particular que faz as coisas parecerem diferentes quando falo de uma casa, trazendo os assuntos em torno dela para meu íntimo ou pensar nela como o faz outra pessoa. É claro que entram outros componentes da malha intelectiva neste processo, como a importância da emoção, o fato de a pessoa ser mais abstrata ou sensorial, mas não vamos tratar destes outros tópicos da EP aqui.

Sendo inversiva a pessoa pensará a casa no seu íntimo e se não o for vai olhá-la como outra pessoa qualquer a olharia. Ao falar da porta que segura entre os dedos o sujeito fala de um objeto intencionado fazendo deslocamento curto. Ele faz deslocamento longo, quando, ao contrário, e ao se referir à Igreja do bairro a duas quadras daqui a descreve embora esteja fora do seu campo de percepção uso.

No livro Estudos de Filosofia Clínica (2008) observo que este aspecto integra o modo de ser do homem. Como todos os seres o homem se encontra no espaço por conta de sua corporalidade, “mas ele é capaz de pensar em outros lugares sem sair fisicamente de onde está” (p. 38). O que espera obter ao mudar sua perspectiva espacial? Ele espera “completar sua visão de mundo” (Carvalho, 2005. p. 37), pois o homem, como observa Forghieri (1993), “pode vivenciar o distanciamento e a proximidade de locais, coisas e pessoas (...) de acordo com seu modo de existir” (p. 45).

 

VI. Deslocamento longo e transcendência do entorno

Indicamos no item anterior que para a Filosofia Clínica, espacialidade na malha intelectiva representa um deslocar-se para o próprio interior ou para a perspectiva do outro, falar de coisas próximas ou distantes como o são as lembranças da infância ou uma Igreja distante. Voltemos ao exemplo da casa. A casa da infância pode evocar lembranças do passado, do pai lendo na varanda, da mãe acendendo o fogão a lenha, dos bolos maravilhosos que fazia, dos amigos que moravam ao lado. Lembranças alegres de um passado distante se formam na consciência. Elas expressam o deslocamento longo.

É pelo deslocamento longo que o homem pode transcender o momento vivido e traduzir a perspectiva de outrem ou trazer para si este outro foco dos fenômenos. Deslocamento longo é a transcendência em direção ao outro e no tempo. Ele traduz um aspecto da espacialidade na malha intelectiva, pois o homem não apenas está em seu local e instante atual. Mesmo sem sair fisicamente de onde está ele pode transcender esta circunstância como lembra Forghieri (1993): “O nosso espacializar não se limita ao estar aqui, pois inclui o ter estado lá e o poder ir a estar acolá, reunidos numa compreensão global” (p. 44).

O deslocamento longo é um fenômeno que se esclarece a partir dos estudos de Jean Paul Sartre sobre a imaginação. Nos seus trabalhos fenomenológicos, o filósofo francês fala da imaginação como um dirigir-se a um objeto transcendente, um objeto que já não está fisicamente diante de mim, mas que aparece na consciência com o conteúdo que lhe atribuo. Ao fazer deslocamento longo é como se o sujeito se afastasse do fenômeno que o envolve. O deslocamento longo traduz a possibilidade humana de transcender o que o cerca proximamente e fazer do entorno algo diverso do que o cerca fisicamente. A relação com o meio permanece como exigência de compreensão, mas o sujeito afasta o que o envolve imediata e proximamente para construir um outro meio. Este outro meio é o que Sartre denomina imaginação, conforme resume Garaudy (1966): “Para que a consciência possa imaginar, é preciso que ela escape ao mundo graças à sua própria natureza, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo” (p. 74).

Ao fazer o deslocamento longo o sujeito cria o mundo que imagina e se afasta de sua experiência próxima. Ao se distanciar do objeto imediato na busca de uma melhor compreensão ele amplia o significado de fenômeno. A casa de nosso exemplo ganha sentido para o morador porque ele se afasta de sua presença imediata e faz deslocamento longo, destacando-se o que o sujeito pensa sobre o fundo da saudade.

O deslocamento longo não ocorre apenas para o passado, como explicado acima. Quando assim ocorre este passado representa a riqueza de experiências fundamentais das quais ninguém pode nos privar. No entanto, em diversas situações a transcendência é para o futuro, conforme relata Victor Frankl. Contando suas experiências num campo de concentração nazista ele explicou que aqueles que conseguiram ir ao futuro ampliando o espacializar em sua malha intelectiva conseguiram superar melhor os traumas da situação vivida. Ele afirma (s.d.): “para elevá-los psiquicamente, era necessário apontar-lhes uma meta no sentido do futuro; fazer tudo para lhes recordar que a vida ou alguém esperava por eles” (p. 109). Portanto, o deslocamento longo é não só ir para outro lugar distante no espaço e passado, mas pode ocorrer também como uma ida a um futuro distante.

O colocar o fato como uma figura sobre o fundo, Sartre adere aos ensinamentos da escola da Gestalt e expressa o entendimento fenomenológico de que na imaginação a figura ganha compreensão sobre o fundo. Nos estudos sobre a imaginação, Sartre conclui, que os objetos só existem para o sujeito envolvido num nada de significado, dando um sentido ontológico de fundo na questão de natureza psicológica.

 

VII. Espacialidade e Fenomenologia

O tópico espacialidade tem seu fundamento na fenomenologia? Não consiste esta forma de se situar intelectualmente mais em si do que no outro, mais ao alcance dos sentidos do que em objetos distantes numa atitude psicológica? É evidente que estamos descrevendo um fenômeno psicológico. No entanto, para ficarmos no exemplo que temos usado de uma casa pensada no íntimo do morador e quando ele se transporta para a perspectiva de outra pessoa, não há uma consciência fechada em si com significados que lhe pertencem. Estar consciente é uma maneira de existir, ou um modo de ser. O trazer para si um fenômeno que ocorre fora ou seu contrário é atitude psicológica que não se separa do mecanismo fundamental descrito pela escola fenomenológica, como diz Luijpen (1973): “A unidade da implicação mútua de sujeito e mundo é a dimensão original em que o homem está, pensa e fala. Colocando-se fora dela, não se encontra em nenhuma parte e não fala de nada” (p. 80). Em outras palavras, a espacialidade do espaço intelectivo é uma forma de viver a relação entre o sujeito e o seu entorno mais nele ou mais fora.

 

VIII. Considerações finais

Neste trabalho examina-se a espacialidade da malha intelectiva, representada pelo tópico 14 da Estrutura de Pensamento (EP). Verificou-se que a espacialidade representa a possibilidade humana de transcender o momento presente ou de mudar o foco do fenômeno levando para fora ou trazendo para dentro da pessoa a forma de examinar as coisas.

A Filosofia Clínica sempre destaca o modo como o partilhante vê as coisas e por isto ele é a figura central do processo clínico. Ao falar das mudanças na malha intelectiva queremos saber se o sujeito traz para si o que vê fora ou se faz o movimento contrário. Caso se transporte para fora a Filosofia Clínica examina se o partilhante vai para longe ou perto de sua experiência sensorial dando nomes diferentes aos dois modos de deslocamento.

Quando o sujeito desloca-se para fora ou traz para si a visão de outrem ele procura descrever e compreender uma realidade psicológica cujo mecanismo é usado para explicar o que pensa, mas esta experiência serve também para transformar as dificuldades experimentadas.

O espacializar é objeto da filosofia fenomenológica, mas também é estudado nas escolas psicológicas de raiz fenomenológica. Na Gestalt-terapia, por exemplo, observa-se que a experiência presente convive com a história da pessoa, numa relação de figura e fundo, de todo e parte.

Do afirmado duas conclusões surgem:

1. espacializar é um tópico da estrutura de pensamento que se vale dos ensinamentos da filosofia fenomenológica sobre a forma do existente se situar no mundo;

2. espacializar é o nome que a Filosofia Clínica dá à possibilidade humana de transcender no tempo e no espaço reconhecido pela escola fenomenológica.

 

3. O tópico espacializar mostra o vínculo entre a Filosofia Clínica e a Escola Fenomenológica.

 

Bibliografia

CARVALHO, José Mauricio de. Filosofia Clínica, estudos de fundamentação. São João del-Rei: UFSJ, 2005.

______. O Homem e a Filosofia. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

______. Estudos de Filosofia Clínica. Curitiba: Ibpex, 2008.

DANTAS, V. CLAUSS, M. FARADAY, S. Terapia em Filosofia Clínica. Fortaleza: s. ed., 2004.

FRANKL, Victor. Um psicólogo num campo de concentração. Lisboa: Áster, s.d.

FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica. São Paulo:Pioneira, 1993.

LUIJPEN, W. Introdução à fenomenologia existencial. São Paulo: EPU, 1973.

PACKTER, Lúcio. Caderno D. Porto Alegre: Instituto Packter, 1997/8.

______. Passeando pela vida. Florianópolis: Garapuvu, 1999.

PAULO, Margarida Nichele. Compêndio de Filosofia Clínica. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2001.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Espacialidade, o lugar do sujeito

 

José Mauricio de Carvalho

Departamento de Filosofia da UFSJ

 

 

I. Considerações iniciais

Este trabalho examina o tópico 14 da Estrutura de Pensamento (EP), lugar da malha intelectiva que traduz as formas do sujeito viver sua localização no espaço. Através da espacialidade espera-se entender como a pessoa se situa em sua estrutura intelectiva. A pessoa pode se voltar para o que já vivenciou ou pode buscar no futuro um alento para suas dificuldades atuais. Ela pode trazer para si uma situação de outrem, ou pode transcender no tempo e espaço e assim se posicionar diante da experiência vivida.

 

 Pretende-se demonstrar que o tópico representa um aspecto fundamental do modo de ser do homem, abordado pelos fenomenólogos como ser em situação. O propósito deste reconhecimento é fortalecer os vínculos da Filosofia Clínica com a Escola Fenomenológica. O método fenomenológico descreve a essência das experiências íntimas, por isto, mesmo sendo uma ciência eidética concreta, ajuda a entender os fatos psicológicos. Fica desta forma estabelecido o vínculo entre as questões psicológicas tratadas na Filosofia Clínica e o modo de ser do homem, forma da escola fenomenológica descrever a existência humana.

 

Os assuntos examinados a seguir são: a espacialidade humana segundo a escola fenomenológica, a singularidade da espacialidade intelectual comparada com a presença corporal, a importância da linguagem como instrumento da espacialidade intelectual e os modos de manifestação da espacialidade intelectual segundo a Filosofia Clínica.

 

II. Espacialidade humana

A relação com o mundo é percebida pela localização de nosso corpo no espaço. O corpo nos situa num determinado lugar e faz ver o mundo de forma singular. Tudo seria diferente para o homem se a mão não tivesse dedos, se os pulmões não retirassem o oxigênio do ar ou se não tivéssemos pés para nos locomover e nos levar de um lado para outro. Porque as coisas são seguras pelos dedos, o ar sentido pelos pulmões e narinas, o chão tocado pelos pés é que o mundo nos parece do modo que é. Este significado fenomenológico de nossa existência é o tema do capítulo filosofia do corpo publicado em Passeando pela vida. Como exemplo transcrevo o que diz Lúcio Packter sobre o nariz (1999): “o nariz seria maior, mas havia o exemplo exagerado dos elefantes” (p. 52).

 

III. Espacialidade e situação

Pela espacialidade, entendida como realidade corporal, o homem se localiza num certo ponto do espaço e tempo. A espacialidade intelectiva ou do eu é diferente da espacialidade corporal. Encontramos, ordinariamente, duas formas de tratar a espacialidade do eu entre os fenomenólogos. De um lado, há aqueles como o existencialista Gabriel Marcel que consideram impossível pensar um eu desmaterializado, pois o eu apenas se encontra em um corpo. Neste caso entre o corpo e o eu não há uma relação instrumental, o corpo não é algo que envolve o eu. O corpo é o ponto de inserção no mundo e o homem é um ser encarnado vivendo em uma situação. Isto significa que tudo quanto existe na natureza ou na cultura acha-se em relação com o corpo e este situa o sujeito no mundo.

 

O estar em relação inseparável com o mundo é uma conclusão comum entre os fenomenólogos. No entanto, filósofos como W. Luijpen percebem que a espacialidade corporal que situa o sujeito no aqui e agora é realidade diferente da espacialidade representada na malha intelectual. Esta última propicia ao sujeito transcender o espaço e o tempo em que o corpo está. Esta compreensão tornou-se marca da filosofia raciovitalista de José Ortega y Gasset que ao dizer que o sujeito é ele e sua circunstância cuidou de explicar que da circunstância fazem parte o corpo e tudo o mais que envolve o eu, desde as emoções até a família, a cidade, o momento histórico, a cultura, enfim.

 

IV. Espacialidade e linguagem

A nossa presença no mundo não se faz só pelo corpo, mas também pela forma de pensar. Assim ocorre porque a relação com o mundo pelo corpo e pelo pensamento são coisas diferentes, mas ambas fazem parte do modo humano de ser. O pensamento se expressa pela linguagem. O fato de falar é um aspecto fundamental da existência humana. Através da linguagem o homem dá sentido ao que está a sua volta. Dar sentido não é uma criação solipista, teoria para a qual só existo eu e todos os outros entes são idéias minhas, mas de troca com o entorno que me envolve. Parece estranha a afirmação fenomenológica de que sem sujeito o mundo não existe, mas isto é diferente de dizer que não há nada em volta do homem, o que há, segundo os fenomenólogos, é um mundo-para-o-sujeito. A conclusão que daí tiramos é muito importante para o filósofo clínico, pois as palavras não apenas soam, elas, pela linguagem, nos situam no mundo pelo sentido que damos aos fenômenos. Isto é, as palavras traduzem a posição intelectiva do sujeito captada espacialidade enquanto elemento da Estrutura de Pensamento (EP).

 

V. Espacialidade na Filosofia Clínica

O tópico 14 da Estrutura de Pensamento (EP) é a espacialidade. Para a Filosofia Clínica, conforme ensina Lúcio Packter no Caderno D, espacialidade é “a posição intelectiva da pessoa. Teu corpo está aí, ele pergunta, mas onde estão os conceitos da sua malha intelectiva” (p. 14). Com esta pergunta ele quer dizer que os conceitos da malha intelectiva podem não estar exatamente na mesma posição de tempo e de espaço que o corpo está. Como a pessoa pode se localizar no espaço intelectivo? Lúcio Packter resume as formas desta posição explicando que ela pode trazer um assunto qualquer para sua intimidade e tentar resolvê-lo em seu íntimo. Neste caso o que ocorre fora do sujeito é transposto para o seu universo interior num fenômeno denominado inversão. Michele Paulo em Compêndio de Filosofia Clínica (2001) esclarece que inversão é o processo de trazer “os outros ao seu mundo existencial” (p. 55/6), ao espaço íntimo do sujeito. O contrário também ocorre, o sujeito pode ir até o outro ou até algum objeto num fenômeno denominado recíproca de inversão. Quando este processo de transposição para fora do sujeito assume entes que estão ao alcance dos sentidos, chamamos este fato de deslocamento curto e, diversamente, denominamos deslocamento longo quando a perspectiva para onde o sujeito se transporta distancia-se de seus dados sensoriais, conforme comentam Dantas, Clauss e Faraday em Terapia em Filosofia Clínica (2001).

 

No livro Estudos de Filosofia Clínica (2008) observo que este aspecto integra o modo de ser do homem. Como todos os seres o homem se encontra no espaço por conta de sua corporalidade, “mas ele é capaz de pensar em outros lugares sem sair fisicamente de onde está” (p. 38). O que espera obter ao mudar sua perspectiva espacial? Ele espera “completar sua visão de mundo” (Carvalho, 2005. p. 37), pois o homem, como observa Forghieri (1993), “pode vivenciar o distanciamento e a proximidade de locais, coisas e pessoas (...) de acordo com seu modo de existir” (p. 45).

 

VI. Deslocamento longo e transcendência do entorno

É pelo deslocamento longo que o homem pode transcender o momento vivido e traduzir a perspectiva de outrem ou trazer para si este outro foco dos fenômenos. O deslocamento longo é um fenômeno que se esclarece a partir dos estudos de Jean Paul Sartre sobre a imaginação. Nos seus trabalhos fenomenológicos, o filósofo francês fala da imaginação como um dirigir-se a um objeto transcendente, um objeto que já não está fisicamente diante de mim, mas que aparece na consciência com o conteúdo que lhe atribuo. Ao fazer deslocamento longo é como se o sujeito se afastasse do fenômeno que o envolve. O deslocamento longo traduz a possibilidade humana de transcender o que o cerca proximamente e fazer do entorno algo diverso do que o cerca fisicamente. A relação com o meio permanece como exigência de compreensão, mas o sujeito afasta o que o envolve imediata e proximamente para construir um outro meio. Este outro meio é o que Sartre denomina imaginação, conforme resume Garaudy (1966): “Para que a consciência possa imaginar, é preciso que ela escape ao mundo graças à sua própria natureza, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo” (p. 74).

 

O deslocamento longo não ocorre apenas para o passado, como explicado acima. Quando assim ocorre este passado representa a riqueza de experiências fundamentais das quais ninguém pode nos privar. No entanto, em diversas situações a transcendência é para o futuro, conforme relata Victor Frankl. Contando suas experiências num campo de concentração nazista ele explicou que aqueles que conseguiram ir ao futuro ampliando o espacializar em sua malha intelectiva conseguiram superar melhor os traumas da situação vivida. Ele afirma (s.d.): “para elevá-los psiquicamente, era necessário apontar-lhes uma meta no sentido do futuro; fazer tudo para lhes recordar que a vida ou alguém esperava por eles” (p. 109). Portanto, o deslocamento longo é não só ir para outro lugar distante no espaço e passado, mas pode ocorrer também como uma ida a um futuro distante.

 

O colocar o fato como uma figura sobre o fundo, Sartre adere aos ensinamentos da escola da Gestalt e expressa o entendimento fenomenológico de que na imaginação a figura ganha compreensão sobre o fundo. Nos estudos sobre a imaginação, Sartre conclui, que os objetos só existem para o sujeito envolvido num nada de significado, dando um sentido ontológico de fundo na questão de natureza psicológica.

 

 

VII. Espacialidade e Fenomenologia

O tópico espacialidade tem seu fundamento na fenomenologia? Não consiste esta forma de se situar intelectualmente mais em si do que no outro, mais ao alcance dos sentidos do que em objetos distantes numa atitude psicológica? É evidente que estamos descrevendo um fenômeno psicológico. No entanto estar consciente é uma maneira de existir, ou um modo de ser. O trazer para si um fenômeno que ocorre fora ou seu contrário é atitude psicológica que não se separa do mecanismo fundamental descrito pela escola fenomenológica, como diz Luijpen (1973): “A unidade da implicação mútua de sujeito e mundo é a dimensão original em que o homem está, pensa e fala. Colocando-se fora dela, não se encontra em nenhuma parte e não fala de nada” (p. 80). Em outras palavras, a espacialidade do espaço intelectivo é uma forma de viver a relação entre o sujeito e o seu entorno mais nele ou mais fora.

 

VIII. Considerações finais

Neste trabalho examina-se a espacialidade da malha intelectiva, representada pelo tópico 14 da Estrutura de Pensamento (EP). Verificou-se que a espacialidade representa a possibilidade humana de transcender o espaço e o tempo.

 

Ao falar das mudanças na malha intelectiva queremos saber se o sujeito traz para si o que vê fora ou se faz o movimento contrário. Caso se transporte para fora a Filosofia Clínica examina se o partilhante vai para longe ou perto de sua experiência sensorial dando nomes diferentes aos dois modos de deslocamento.

 

Quando o sujeito desloca-se para fora ou traz para si a visão de outrem ele procura compreender uma realidade psicológica cujo mecanismo é usado para explicar o que pensa, mas esta experiência serve também para transformar as dificuldades experimentadas.

 

O espacializar é objeto da filosofia fenomenológica, mas também é estudado na Gestalt-terapia, onde, por exemplo, observa-se que a experiência presente convive com a história da pessoa, numa relação de figura e fundo, de todo e parte.

 

Do afirmado duas conclusões surgem:

1. espacializar é um tópico da estrutura de pensamento que se vale dos ensinamentos da filosofia fenomenológica sobre a forma do existente se situar no mundo;

2. espacializar é o nome que a Filosofia Clínica dá à possibilidade humana de transcender no tempo e no espaço reconhecido pela escola fenomenológica.

3. O tópico espacializar mostra o vínculo entre a Filosofia Clínica e a Escola Fenomenológica.

 

Bibliografia

CARVALHO, José Mauricio de. Filosofia Clínica, estudos de fundamentação. São João del-Rei: UFSJ, 2005.

______. O Homem e a Filosofia. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

______. Estudos de Filosofia Clínica. Curitiba: Ibpex, 2008.

DANTAS, V. CLAUSS, M. FARADAY, S. Terapia em Filosofia Clínica. Fortaleza: s. ed., 2004.

FRANKL, Victor. Um psicólogo num campo de concentração. Lisboa: Áster, s.d.

FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica. São Paulo:Pioneira, 1993.

LUIJPEN, W. Introdução à fenomenologia existencial. São Paulo: EPU, 1973.

PACKTER, Lúcio. Caderno D. Porto Alegre: Instituto Packter, 1997/8.

______. Passeando pela vida. Florianópolis: Garapuvu, 1999.

PAULO, Margarida Nichele. Compêndio de Filosofia Clínica. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2001.

 

 

 

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