Caro
amigo,
Por
ocasião do XX Encontro Nacional de Filosofia Clínica, evento que
aconteceu em Goiânia de 28 de abril a 1 de maio, o Instituto Packter
lançou um curso inédito e sou convidado a realizar as aulas:
Relacionamentos Afetivos em Educação Pessoal. Um curso no qual a
Filosofia Clínica conversará com autores, textos, rumo aos indicativos
de uma educação pessoal. Mas o que vem a ser isso?
Considere um encarte do que veremos neste curso:
Piero se ofende
facilmente com palavras duras da namorada e se fecha em uma carranca e
monossílabos que põem abaixo um final de semana que se anunciava como
promissor, praia e sol. A namorada chora. Pergunta a ele o que está
acontecendo. Na tentativa de um diálogo, a questão se agrava e o mal
estar se aprofunda. Piero se alimenta de afetividade negativa, uma vez
que uma afetividade melhor, segundo nossos padrões de época, está fora
de seu alcance. Na segunda-feira, quando voltarem a conversar, a
reparação, as desculpas, isso será o mais próximo que Piero chegará do
que ele imagina como sendo o amor.
Retires é um
sacerdote sem fé. Um religioso considerado, bem quisto, virtuoso, um
líder flamejante. Admiram sua fé. Retires, o sacerdote ateu, é uma
referência em fé e religiosidade. Seu livro recente, "O caminho para
Deus", é um best seller. Mas Retires nada sabe do caminho para Deus.
Alindo é um
homem com medo. Possui medo de tudo, todos os dias. Ansioso. Gostaria
que a vida passasse e que chegasse ao final. Tudo se consumará logo.
Alindo olha o horizonte e tem a certeza de que o mundo não tem conserto.
Não há solução.
Jatila frequenta
as mídias sociais. Vive conectada. Um comentário ruim de uma pessoa no
Facebook a derruba. Uma pessoa que demora a ver seu recado no Whats App
a deixa arrasada, ainda mais se após ver não lhe devolve algum sorriso
ou um ok, ao menos os dois riscos azulzinhos. Fotografa o prato e posta.
Tem uma foto com Ivete Sangalo que lhe rendeu milhares de curtidas, o
dia mais feliz de sua vida e também o pior de seus dias por causa de
alguns comentários. Jatila vasculha as mídias para saber como é uma
pessoa, nunca acredita no que a pessoa lhe diz pessoalmente, no que a
pessoa vivencia com ela. Quem não está nas mídias não existe para Jatila.
Empresária , Jatila oscila entre Ritalina e Rivotril.
Dudinho é
filósofo. Doutor em ética. Sabe as respostas certas e faz aconselhamento
ético para casais. Seu coração há muito morreu em um infarto, sendo hoje
ocupado pelo córtex. Botox, lindos cabelos pintados, gestos estudados
para todas as ocasiões. Marcha célere para o muro, mas em sua imaginação
ele vê o mar.
Chinprane vive
cansado.
Bel desconfia de
todos. Diz que ajuda a todos e que não é reconhecida. Afirma que seu
problema é que lida com pessoas difíceis. Bel mente muito, independente
de uma eventualidade. Mente como parte do discurso e já não diferencia
as coisas. Quem não concorda com Bel está contra ela. Tornou refém de
seu abismo existencial os filhos e o marido. Ficou por semanas magoada
quando uma conhecida lhe disse que a questão toda envolvia
preponderantemente o caráter.
Tônio tem
câncer. Gostaria de viver, mas não tem a menor ideia do que isso quer
dizer. Se sobreviver, pois faz quimioterapia, seguirá fingindo que está
vivo e desperdiçando todo o tempo que puder, como os intermináveis jogos
de canastra na praia para "matar o tempo".
Primo vive de
aparências. Sabe disso, sustenta. Quer seguir assim até sempre.
Rafino esconde
de seu parceiro que é heterossexual. Não sabe como encaminhar o assunto
em sua vida.
Cartos está com
a empresa irremediavelmente quebrada há dois anos. Sua numerosa família
vive da empresa. Cartos pensa em suicídio todos os dias.
Fane operou o
nariz, as orelhas, os lábios, a testa. Sua aparência agora é uma
caricatura da beleza que houve um dia. Médicos e antidepressivos atenuam
sua dor e afundam sua epopeia.
“O jantar
estava lindo. Foi maravilhoso” – escreveu Alice no Whats App e
acrescentou uma flor. Um dia depois (um dia!), Paulo retornou com um
“ok”. Alice entendeu que Paulo não se interessou por ela. Mas quando ele
ligou, dois dias depois, caloroso e carinhosamente a convidou para uma
palestra na PUC, ela também não entendeu. O fato é que Paulo não se
expressava conforme o que lhe acontecia no íntimo escrevendo
“coisinhas”, conforme ele disse, no Whats App, mas sim conversando em
voz. Um mês de relacionamento foi o tempo que Paula precisou para ter
certeza disso, com muitas tristezas pelo caminho.
Cristina somente
se interessa por gente casada. Pois “usado vem amaciado”, ela diz. Para
Cristina, gente casada some nos finais de semana e tem filhos para
incomodar. “Gente casada tem mulher e marido em casa, monotonia,
frustração: é perfeita para apreciar os momentos longe dessa encheção”.
Marcelo tem 43
anos. Tem ciúmes da maneira como Rula trata o filho de 22 anos. Vive
promovendo conflitos entre ela e o filho, mas de um modo que seus ciúmes
parecem justificados. “Um cara de 22 anos que dorme até as dez da manhã
em uma segunda-feira, para mim é um vadio.”
Jair adora jogar
um final de semana no lixo por causa de discussões infantis. No feriadão
ficou sozinho porque Beatriz não entendeu que ele queria abrir a porta
do carro para ela. Isso rendeu longa, dolorosa, inevitável conversa
inamistosa sobre feminismo e insensibilidade. Jair é viciado em
afetividade negativa (outra ilustração).
Afetividade
negativa usualmente funciona assim: Angela não obtém carinho, amor de
Dudu, a quem ama e com quem necessita intimamente estar vinculada; então
Angela promove brigas, mágoas, desavenças circenses, com o cuidado de
não levar tais armações longe demais, coisas que poderiam ocasionar o
término definitivo. Brigam muito, muito gritam e se magoam. Então fazem
as pazes. Ela obtém alguns carinhos, promessas de amor, reconstrói parte
do que foi quebrado, e alguns dias depois promove novo episódio de
afetividade negativa. Sempre que o relacionamento parece ficar sem
graça, monótono, surge um novo capítulo de afetividade negativa. Angela
diz que detesta, mas é a sua nicotina.
Mário não
acredita que exista algo chamado amor. O que existe é dependência
emocional. Mário é gay, mas somente consegue ser feliz namorando
mulheres e fazendo terapia.
Paty aprecia
conversar com Dalia. Não fazem amor, fazem conversa. Dalia teve
depressão e tentou se matar duas vezes. Conversam.
Tatá e Fefê.
Tatá bate com palavras. Fefê somatiza e espanca Tatá. Tatá é policial.
Por três vezes deu tiros no teto de gesso de casa. Os amigos pedem a
separação. Tatá e Fefê nunca viveram mais de uma semana sem a vida em
conjunto. “Relação tafológica” – interpretam os amigos.
Xira olha o
celular de Tato quando ele está no banheiro. Tato não olha o celular da
Xira quando ela dorme porque ele não sabe a senha que foi trocada na
Semana Santa.
Tais e Jóca
vivem há cinco anos juntos. Para Tais, intimidade é sexo; porém para
Jóca também. Tais gosta de sexo com Jóca, mas não gosta de Jóca. Por sua
vez, Jóca também não gosta de Jóca.
Armando está
solteiro e muito bem acompanhado. De vez em quando ele namora e se sente
feliz. Namorar ocasionalmente é parte importante do modo como ele é
solteiro, do modo como se sente bem acompanhado sozinho. Não consegue
estar longos períodos namorando porque isso o deixa infeliz e mal
acompanhado.
Para Sonia, o
amor é algo superficial. O amor a distrai da profundidade que uma
amizade encerra. Sonia somente se relaciona intimamente com amigos,
compreende como passar longe de estados amorosos que ultrapassam os
preceitos da amizade.
Para Lenites o
amor é o que existe de mais barato. Todo o restante costuma lhe custar
muito caro: gripe, bursite, mágoa, solidão.
Depois que se
encanta com alguém, Fernanda inicia um namoro (que nunca tem este nome)
e diligentemente procura modificar a pessoa para que esta fique afetuosa
e solicita. Quando isso acontece, invariavelmente o namoro termina.
Fernanda sabe disso, adora ser assim. Periodicamente entra em crises de
tristeza, usa de medicação, reinicia com um novo namoro. Um ciclo novo a
cada três anos.
Daumindes
procura uma pessoa como ela: sincera, amorosa, respeitosa e cativante.
Quando encontra uma pessoa assim, há um encantamento (admiração,
conforme ela diz), seguida de violência verbal, brigas imensas e
desgastantes. Nenhuma dessas pessoas acha que Daumindes de fato seja
sincera, amorosa, respeitosa e cativante, como elas mesmas também não
são. Acham Daumindes cega existencialmente para isso, como aliás elas
também são.
Tamaira é
ciumenta em um grau preocupante. Mas ela se diz zelosa, cuidadosa.
Suzana:
excelente namorada; péssima esposa.
Fátima: muito
boa mãe de seu marido.
Carmem se acha
uma pessoa razoável, acima da média, melhor que a maioria. No fundo,
Carmem nunca amaria alguém como ela.
Glínisia sabe
tudo sobre relacionamento, acaba de concluir um mestrado na área.
Glinísia nunca teve um relacionamento que passasse nos critérios que ela
mesma considera bons.
Nildinho é
casado. Usa o casamento como disfarce para seduzir pessoas incautas. É
mal casado, mal namorado, de mal com a vida. Usa todos os esforços para
se convencer de que deseja mudar; sabe essencialmente que isso é
mentira.
Halene é uma
sedutora. Alimenta-se de sedução, motiva-se com isso. Somente tolera
estar em um relacionamento enquanto existe a possibilidade de sedução.
Concluída a etapa da sedução é a hora de um novo relacionamento.
Mariele é
viciada em relacionamentos. Desde os 15 anos nunca esteve sozinha, de
jeito nenhum.
Oto desistiu,
ainda que parece seguir tentando. Essa impressão se deve ao fato de Oto
não ter a menor ideia do que anda fazendo na vida.
Ruiva, a famosa
detalhista, aquela da rua 32, morreu.
Os exemplos
seguem rumo ao sem fim. Milhares de exemplos, ilustrações que não chegam
ao final.
Mas assim sendo
escrito, indicativamente pode estar parecendo que as pessoas citadas
possuem males que pedem por uma medicação existencial, um corretivo, uma
série de medidas que leve ao equilíbrio, harmonia, à saúde e ao bem
estar. A questão é que em Filosofia Clínica, em muitos e muitos casos,
se considerarmos as coisas pela gangorra da saúde e da doença, uma em
cada distante lado, o desequilíbrio grave (ou a verdadeira doença)
poderia ser a harmonia, a saúde, o bem estar. Exemplo: a saúde, o bem
estar, a harmonia podem ser a maneira com que uma determinada sociedade
premia aqueles que se tornam alienados quanto ao padecimento de milhares
de pessoas; os "saudáveis" receberiam quantidades generosas de bem
estar, desde que desdenhassem respeitosamente daqueles que sofrem e
gemem. Bastaria que demonstrassem condescendência, que oferecessem
esmolas, que constatassem o quanto os que sofrem são respeitosamente
atrasados existencialmente.
Mas o que
aconteceria se não existissem mocinhos e bandidos, bons e maus, ricos e
pobres, e se utilizássemos balanças que pesassem os diferentes pesos nos
diferentes contextos? Isso seria possível em mentes que aprenderam a ler
o mundo pelo sistema de balanças, gangorras lados? Alguns não sabem quem
são e onde estão se não colocarmos diante deles uma gangorra e em cima
da prancha da gangorra os mocinhos, de um lado, e os bandidos, de outro
lado.
Bem, entre
outras coisas, pode ser este um dos inícios de uma Educação Pessoal pelo
enfoque da Filosofia Clínica.
Um curso sobre
Educação Pessoal poderia trazer indicativos, orientações, propostas de
caminhos a estas pessoas? O que a Filosofia Clínica traria como
reflexão, como proposta, como horizontes possíveis?
Este é o convite
para este curso. Talvez você compreenda que seu maior dilema obedece a
configurações de uma ordem que não havia considerado; quem sabe a dor
não fosse uma ferida aberta, mas uma cicatrização em andamento; e se a
sua certeza era apenas parte de uma dúvida? E sobre os caminhos? E sobre
os cuidados? O que fazer?
Lúcio Packter
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