Quando comecei a escrever, jurei que jamais abriria um artigo com a velha técnica: "Estou diante da página branca... mas falta-me um assunto" ou "a tela vazia do computador brilha pedindo um tema ? nada me ocorre." Jamais usei essa desculpa de articulista sem inspiração. E mantenho a promessa. Só que hoje não sou eu que estou sem assunto ? é o Brasil. O governo nos surripiou, entre outras coisas, o "assunto". Lula repete o "espetáculo permanente" inventado por Jânio Quadros. E seus atos e fatos pautam o País.
É uma forma sutil de controlar a imprensa, obrigando-a a discutir ou refutar "factóides" que nos lançam o tempo todo. Somos obrigados a discutir falsas verdades, denúncias vazias, em meio ao delírio narcisista de que o Brasil é Lula, de que existimos para celebrá-lo ou odiá-lo.
Esse primitivismo paralisa os acontecimentos nacionais. Ou pior, parece acontecer muita coisa no País, mas nada de real está se concretizando, além do óbvio previsto: estouro das contas públicas, obras de pacotilha, empreguismo, ideologismo ridículo e terceiro-mundista. Os escândalos "parecem" acontecimentos.
O PT encobre falcatruas em nome do poder, que eles chamam de "ideal socialista" ou algo assim. Tudo que acontece se coagula, coalha como uma pasta, uma "geleca", um brejo de não-acontecimentos onde tudo boia sem rumo. Ou então são eventos disparatados: um dia Lula está com o Collor; no outro, com o Hamas.
Uma visão crítica e racional sobre o Brasil ficou inútil. A maior realização deste governo foi a desmontagem da Razão. Podemos decifrar, analisar, comprovar crimes ou roubos, mas nada acontece. Fica tudo boiando como rolhas na água. A sinistra política de alianças que topa tudo pelo poder planeja com descaro transformar-se numa espécie do PRI mexicano. Desmoralizaram o escândalo, as indignações, a ética (essa palavra burguesa e antiga para eles)... Esses pelegos usurparam os melhores conceitos de uma verdadeira esquerda que pensa o Brasil dentro do mundo atual, uma esquerda que se reformou pelas crises do tempo, antes e depois da queda do Muro de Berlim. Eles se obstinam em usurpar o melhor pensamento de uma genuína "esquerda" contemporânea, em nome de uma "verdade" deformada que instituíram.
Sinto-me um idiota (mais do que já sou, ai de mim...) e parece que ouço as gargalhadas barbudas de velhos sindicalistas como Vaccari, Vaccareza, Vanucci: "Ahh pode criticar... estamos blindados, tanto quanto os companheiros Sarney ou Renan..."
As velhas categorias para explicar o Brasil morreram. Já há uma pós-corrupção, uma pós-direita (disfarçada de "esquerda").
Somos uma sopa em que flutuam as eternas colunas sociais, com os sorrisos e as bundas nuas, as velhas madames e as novas peruas, os crimes, as balas perdidas, as revoltas nas prisões.
Já vivi épocas de cores mais vivas. O pré-64 era vermelho, não só pelas bandeiras do socialismo, mas pelo sangue vivo que nos animava a construir um País, romanticamente. Era ilusão? Era. Mas tinha gosto de vida. A minha esquerda já foi sincera. Hoje é esta trama-pelega. E a ditadura de 64, aquele verde-oliva que nos cercou como uma epidemia de vil patriotismo? Era terrível? Sim. Mas, nos dava o "frisson" de lutar contra o autoritarismo ou de sermos "vítimas" das porradas da História. Já passei pelas drogas e desbundes da contracultura, pelos depressivos anos cinzentos post-mortem de Tancredo, passei pelos rostos amarelos e verdes do "impeachment", pelo azul da esperança do Plano Real. E hoje? Qual é a cor de nosso tempo? Somos uma pasta cor de burro quando foge, uma cobra mordendo o próprio rabo, um beco sem saída disfarçado de progresso, graças à vitalidade da economia que o Plano Real permitiu.
Somos tecnicamente uma "democracia", que é vivida como porta aberta para oportunismos, pois a "cana" é menos dura... Democracia no Brasil é uma ditadura de picaretas. O povão prefere um autoritarismo populista e os intelectuais sonham com um socialismo imaginário que resolva nosso bode "capitalista", quando justamente o injusto capitalismo seria a única bomba capaz arrebentar nosso estamento patrimonialista de pedra. Quem quiser alguma positividade é "traidor". A miséria tem de ser mantida "in vitro" para justificar teorias velhas e absolver incompetência. A Academia cultiva a "desigualdade" como uma flor. Utopia de um lado e burrice do outro impedem a agenda de nossas reformas urgentes, essenciais para nossa modernização, que grossos barbudos chamam de "neoliberalismo".
Nos USA, tempo é dinheiro; no Brasil, a lentidão é a mola mestra do atraso. O Brasil gira em volta de si mesmo.
Somo feitos de sobras do ferro-velho mental do País, de oligarquias felizes e impunes, de um Judiciário caquético, das caras deformadas de políticos, das barrigas, das gravatas escrotas, da gomalina dos cabelos, das notas frias, da boçalidade dos discursos, dos superfaturamentos, tudo compondo uma torta escultura, um estafermo fabricado com detritos de vergonhas passadas, togas de desembargadores, bicheiros, cérebros encolhidos, olhos baços, depressões burguesas, hipersexualidade rasteira, doenças tropicais voltando, dengue, barriga d"água, barbeiros e chagas, cheiros de pântano, ovos gorados, irresponsabilidades fiscais, assassinos protegidos no Congresso, furtos em prefeituras, municípios apodrecidos, decapitações, pneus queimados, ônibus em fogo.
No caos não há eventos. Para haver acontecimentos, tem de haver uma normalidade a ser rompida. Mas, nada acontece, pois a anormalidade ficou "normal".
Tenho a sensação de que uma coisa espantosamente óbvia e sinistra está em gestação.
Por isso, gosto de citar a frase da bruxa do Macbeth: "Something wicked this way comes" (Shakespeare). Tradução: "Vem merda por aí!..."
Nossa chance única de modernização pode virar um "chavismo cordial".