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Revista
Ensino Superior de dezembro
Filósofos no divã
João Marcos Rainho
Filosofia clínica oferece um novo campo de trabalho
para uma área antes restrita ao magistério
Na Grécia Antiga, os primeiros filósofos eram especialistas em curar males
da alma. Sócrates (470 a.C.), por exemplo, costumava sentar-se nas ruas e
praças para conversar com as pessoas – muitas vezes em busca de
aconselhamento para seus problemas pessoais. Ele já concentrava interesse
na problemática do homem, provocando e estimulando o diálogo. Ouvia
atentamente, depois levava o seu interlocutor, por meio de perguntas, a
construir um significado para as suas questões e para sua vida; sua
filosofia era uma filosofia para a vida. Tragédias também eram encenadas
nos teatros ao ar livre gregos com o objetivo de exorcizar temores. Esse
uso prático da filosofia como terapêutica foi resgatado há poucos anos
pelo brasileiro Lúcio Packter, a partir de experiências adotadas nos EUA e
na Europa. Packter sistematizou a filosofia clínica, especialização
ensinada em algumas universidades e praticada em vários Estados.
A filosofia clínica utiliza conhecimento da filosofia acadêmica
direcionado à terapia, centrado no sujeito como um todo e no meio onde
está inserido. A prática está fundamentada nas idéias de filósofos como
Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Wittgenstein, Foucault, Searle, entre
outros. O objetivo é reconhecer os conflitos existenciais que a pessoa –
ou partilhante – traz consigo e trabalhar para de amenizá-los. “Hoje, a
filosofia clínica é o maior trabalho já realizado em filosofia acadêmica
na América Latina, considerando-se que somente filósofos graduados em
escolas reconhecidas pelo MEC fazem parte dela”, diz o filósofo gaúcho
Lúcio Packter, sistematizador da especialização.
Neste tipo de terapia, não se trabalha com medicamentos, nem com o
conceito de cura. Para a filosofia clínica não existe o “normal” x
“patológico”, pelo fato de que a estrutura de pensamento de cada indivíduo
é plástica, portanto, cada um é visto na sua singularidade. Isso significa
que não existem rótulos, cada um tem a sua representação de mundo e vida.
Num primeiro momento, o partilhante começa relatando a sua historicidade
de forma mais ou menos ordenada, objetivando uma organização e compreensão
de sua vida. Essa vivência é contada por ele mesmo sem indução por parte
do clínico. Num segundo momento, o filósofo clínico, tendo contextualizado
o problema, perceberá como a pessoa se estruturou internamente. Poderá,
então, observar dados importantes como ciclos repetitivos, padrões
existentes ou problematizados que estão causando mal-estar existencial.
Após este processo, o profissional buscará, junto à pessoa, as ferramentas
necessárias para dar continuidade ao trabalho, visando conscientizá-la de
seu funcionamento interno.
As consultas duram, em média, 50 minutos, uma vez por semana. Quanto ao
período, depende de pessoa para pessoa: algumas, após oito meses de
trabalho, se sentem bem, outras chegam a um ano ou mais. O término do
trabalho se caracteriza pelo bem-estar subjetivo e é decidido
conjuntamente.
Pós-graduado nas áreas de psicologia e psicanálise, Lúcio Packter chegou à
filosofia clínica por não estar satisfeito com as respostas prontas e
objetivas que as outras áreas propunham, reduzindo o comportamento humano
a conceitos de certo ou errado. Viajou pelos EUA e pela Europa em busca de
respostas. Encontrou uma proposta em que o filósofo atuava em
aconselhamento – algo inteiramente distinto da filosofia clínica, mas que
lhe ofereceu uma pista sobre o caminho que deveria trilhar. Retornou ao
Brasil, criou a filosofia clínica e fundou o Instituto Packter.
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arena
A novidade logo encontrou desafetos entre psicólogos e psicoterapeutas,
que criticam a falta de preparo dos filósofos, mas parecem também
preocupados com um novo concorrente no mercado. Em recente matéria
publicada na revista Veja, Pedro Gomes, diretor superintendente da
Associação Brasileira de Psicanálise, disparou: “Isso não tem nenhum valor
terapêutico.” Marcus Vinícius de Oliveira, presidente do Conselho Federal
de Psicologia, foi mais longe: “Isso tudo é uma caricatura oportunista, um
arremedo de assessoria pessoal, uma seita vulgar.” A psicóloga Adelina
França avalia que filosofia e psicoterapia são áreas complementares, mas
“a prática clínica necessita de um preparo que um curso de especialização
não oferece”.
O coordenador do curso de filosofia da Universidade São Judas, Antonio
José da Silva, é outro a ter ressalvas: “A análise de problemas pessoais é
algo complicado e o filósofo não está habilitado para isso. Precisaria de
um treinamento maior.”
“A filosofia clínica tem qualidades e problemas como as demais
terapêuticas, acho importante que se ouça as vozes dissonantes”, diz, em
tom conciliador, Lúcio Packter. “A filosofia clínica veio para se somar às
terapias existentes. A interdisciplinaridade é importante, pois vários
trabalhos fizeram uso, ao longo do tempo, de correntes de pensamentos
filosóficos”, complementa Monica Aiub, presidente da Associação Paulista
de Filosofia Clínica, que lembra das origens terapêuticas da filosofia: “O
princípio do autoconhecimento apregoado por diversas psicoterapias tem sua
origem na inscrição do oráculo de Delfos, tão cara aos filósofos desde a
Grécia Antiga: conhece-te a ti mesmo. Se no decorrer da história da
humanidade o papel do filósofo confundiu-se com o de um especulador de
temas estreitamente teóricos, isso ocorreu devido a uma interpretação
equivocada, pois não há filosofia dissociada da vida e de suas questões
práticas – que suscitam a reflexão e a elaboração de teorias – a fim de
compreendê-las e, quando possível, apontar caminhos para solucioná-las.”
Apesar das críticas, a filosofia clínica ganha projeção nacional. “Em
1995, quando abrimos o Instituto Lúcio Packter, tínhamos apenas duas
turmas com dez alunos cada. Depois de dois anos, já havia 300 estudantes.
Hoje, são 1.300 em todo o país”, contabiliza Hélio Strassburger, filósofo
clínico e diretor do Instituto. O campo de trabalho desses profissionais é
amplo e não se restringe apenas ao magistério, área tradicional da
filosofia que foi reduzida bastante desde que a disciplina foi considerada
não-obrigatória e retirada do currículo das escolas públicas na época do
regime militar. Formam-se, anualmente, cerca de 1.700 filósofos nos cursos
de graduação no Brasil. O filósofo clínico pode trabalhar em consultório
próprio, em clínicas, hospitais, escolas, empresas, instituições públicas
da área de humanas, consultoria ética, pesquisas etc. “O atendimento
clínico é apenas mais uma das aptidões do filósofo, como já existe em
outras áreas, por exemplo, a filosofia da ciência ou a filosofia da
história”, enumera Hélio.
formação
O filósofo clínico deve, obrigatoriamente, ser formado em filosofia e
possuir o curso de especialização em filosofia clínica, com duração de
dois anos mais os estágios supervisionados (total de 540 horas/aula). O
curso é oferecido por profissionais ligados ao Instituto Packter, em Porto
Alegre, com aulas em todo o Brasil. Algumas faculdades já estão envolvidas
com o projeto. As Faculdades Integradas Espírita (Fies), em Curitiba (PR),
promovem o único curso oficial de pós-graduação lato sensu em filosofia
clínica no país. É por intermédio dessa instituição que os alunos obtêm o
diploma chancelado pelo MEC. O Centro Universitário Moura Lacerda
(Ribeirão Preto, SP), oferece a modalidade de formação profissional em
filosofia clínica, com aulas ministradas pelo próprio Lúcio Packter. O
conteúdo programático dos cursos inclui estrutura de pensamento, submodos
(procedimentos clínicos), planejamento clínico, neurofisiologia,
psiquiatria e farmacologia, matemática simbólica e estágio supervisionado.
Outras faculdades já foram influenciadas pela sistematização de Packter e
incluíram a filosofia clínica como matéria da grade curricular, como já
acontece na Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal de
Uberlândia e na Universidade Regional de Blumenal (Furb). O Instituto
Lúcio Packter articula ainda um projeto de doutoramento em filosofia
clínica a ser ministrado na capital paulista em convênio com duas
universidades brasileiras e três estrangeiras, cujos nomes Hélio diz não
poder divulgar por estar em fase de negociações.
Em Ribeirão Preto, o Centro Universitário Moura Lacerda firmou convênio
com o Instituto Packter e oferece o curso de formação profissional de
filosofia clínica, também com dois anos de duração. Os encontros acontecem
duas vezes por mês. “A filosofia clínica abre novas fronteiras de trabalho
além do magistério. Por isso ela fortalece a graduação”, insiste Claudio
Romualdo, coordenador-geral de graduação e aluno do curso idealizado por
Lúcio Packter.
A Fies é a primeira instituição de nível superior a oferecer pós-graduação
lato sensu em filosofia clínica. Ivo José Triches, coordenador do Centro
de Pós-Graduação e Extensão da Fies, afirma que o mercado de trabalho está
crescendo e elogia a nova área: “De tudo o que estudei e aprendi, não
encontrei nada mais importante, interessante e eficaz para entender o ser
humano como a filosofia clínica.” Existem dois tipos de certificado, o B e
o A. No primeiro caso, o estudante possuirá apenas conhecimentos teóricos
de filosofia clínica. Os diplomados com conceito A fazem estágio e estarão
aptos a clinicar. Apenas 50 profissionais enquadram-se na categoria dos
que podem abrir consultório. “O curso é puxado, e, na parte teórica, por
exemplo, o estudante precisa ler mais de 130 autores, incluindo todos os
clássicos em filosofia”, destaca Triches.
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