SUPERINTERESSANTE
 A TERAPIA DA RAZÃO PURA

 ( outubro de 1999 )

 

Nas quartas-feiras de manhã, quando não chove, Carmen B., de 31 anos, e Ana Maria Retamar, de 53, caminham juntas pelas alamedas do Parque da Redenção, em Porto Alegre. Quem vê as duas mulheres jamais imaginaria que não se trata de um passeio, mas de uma sessão de terapia. Carmen, funcionária de um sindicato, sofre de depressão e Ana Maria é a sua terapeuta. Psiquiatra? Psicanalista? Não. Ela é uma filósofa. “É como uma amiga”, elogia Carmen, que afirma Ter melhorado depois que iniciou o tratamento, há quatro meses. “Com ela, eu me sinto em casa.”

A Filosofia Clínica, como é chamado esse tipo de terapia, está ganhando adeptos no Brasil depois de se espalhar pelos Estados Unidos e pela Europa, onde surgiu, no início da década de 80. É um tratamento alternativo altamente controvertido, pois coloca indivíduos que podem ter problemas sérios na mão de profissionais sem formação específica. Por isso, é preciso cuidado. Os filósofos clínicos, como se autodenominam, não receitam remédios, como os psiquiatras, nem estão interessados em conhecer os sonhos e as emoções profundas dos seus pacientes, como os psicanalistas. “Nosso foco está no momento presente”, explica o filósofo gaúcho Lúcio Packter, pioneiro desse movimento no país. Em 1994 ele montou, em Porto Alegre, um curso que já formou 170 filósofos clínicos. “Não queremos mudar a personalidade do paciente, mas ajudá-lo a desembaralhar as idéias”, diz.

O movimento tem como ponto de partida a convicção de que as neuroses podem ser curadas por meio do conhecimento acumulado nos 2500 anos de História da Filosofia. A depressão, por exemplo, é encarada não como uma doença, e sim como um distúrbio causado pela incapacidade de dar sentido à própria existência - um dos temas favoritos dos filósofos de todos os tempos. Na Filosofia Clínica, o terapeuta ouve seu paciente e lhe dá uma série de conselhos, inspirados na obra dos mestres do pensamento. A conversa se limita ao plano intelectual. “Se você mergulhar fundo na emoção da pessoa, ela pode piorar muito”, justifica Packter.

Nem todos os pacientes são aceitos nesta modalidade de terapia. No curso liderado por Packter, a orientação é encaminhar para psiquiatras os que apresentam indícios de distúrbios mentais graves. “Tratá-los só com Filosofia seria arriscado”, admite. A precaução não é suficiente para tranqüilizar especialistas como Rogério Aguiar, professor de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Não basta conversar ou ler livros para sair por aí tratando uma pessoa”, assinala. “Um filósofo é treinado para especular sobre as idéias, não para clinicar.” Em sua defesa, Packter lembra que, em suas origens, na Grécia, a Filosofia estava associada à cura. Sócrates (470 a . C. - 399 a . C.) era chamado de “médico da alma”. As ciências da mente e do comportamento vieram muito depois. “A Psicologia e a Psicanálise foram fundadas sobre os alicerces da Filosofia”, afirma.

O gaúcho Lúcio Packter, de 37 anos, tomou contato com a Filosofia Clínica em uma visita à Holanda no final da década de 80. Formado em Medicina, ele desistiu da carreira de psicanalista e se graduou em Filosofia numa faculdade particular pouco conhecida, o Instituto Imaculada Conceição, em Viamão (RS). Com recursos da família, que possui uma rede de hospitais em Santa Catarina, fundou em 1994 o Instituto Packter, em Porto Alegre, o único centro de formação de filósofos clínicos no país. Para fazer o curso, de dois anos, é necessário o diploma de Filosofia em alguma faculdade reconhecida pelo Ministério da Educação.

Na Filosofia Clínica, as sessões podem acontecer em praças, bares ou salas de aula. Ana Maria Retamar, formada em Filosofia pela Universidade da Campanha, Bagé, dispõe de um consultório, mas também atende em lugares públicos. Na foto acima, ela aconselha sua paciente Solange G. G. num café de Porto Alegre. Solange, de 32 anos, secretária e estudante de Educação Física, procurou-a porque sentia dificuldade em se concentrar nos estudos. Antes, já tinha feito psicoterapia, mas as consultas eram muito caras e, segundo diz, improdutivas. “A psicóloga era muito distante”, afirma. “Parecia que havia uma mesa invisível entre nós.” Depois de quatro meses de consultas com Ana Maria, Solange garante que já melhorou muito.

Para os filósofos clínicos, muitos dos males que afligem o homem contemporâneo são causados pela incapacidade de compreender o mundo que o rodeia. “Quando falta lógica ao raciocínio, o indivíduo tende a se enredar cada vez mais nos seus problemas, gerando um círculo vicioso”, explica Margarida Nichele Paulo, filósofa com mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “Nós ajudamos o paciente a pensar.”

O que tem despertado crítica nesta abordagem, é a crença de que o simples entendimento racional de um problema seja suficiente para resolvê-lo. Quem procura um terapeuta, argumenta o psicanalista Mario Fleig, de Porto Alegre, está mergulhado numa crise pessoal profunda - e essas crises não se resolvem com uma discussão sobre o sentido da vida. “A nossa verdade não se deixa reduzir ao saber que podemos ter sobre nós mesmos”, pondera.

Mas o ponto mais fraco da Filosofia Clínica é a falta de preparo para fazer o diagnóstico. “Como alguém que tenha só a formação filosófica pode distinguir um neurótico de um sadio?”, pergunta Ernildo Stein, professor aposentado de Filosofia e Psicanálise - um conhecedor dos dois lados da questão. “Acho um perigo uma pessoa com uma fobia ou uma obsessão se entregar aos cuidados de um leigo que se intitula terapeuta”, adverte.

Apesar das críticas, alguns pacientes estão satisfeitos. A professora de Educação Física Maria da G. Z., 45 anos, sentia dores misteriosas sempre que se deparava com algum aborrecimento. Os médicos não acharam nenhum problema físico. Maria da Glória recorreu a um filósofo clínico há oito meses, depois que seu pai morreu e ela ficou vários dias sem se levantar da cama. Agora, sente-se bem mais animada. “Faz quatro meses que não tomo nem aspirina”, alegra-se. Pílulas, só de Filosofia.

O primeiro filósofo da atualidade a dar consultas particulares foi o alemão Gerd Achenbach. Em 1981, ele se pôs à disposição de qualquer indivíduo interessado em conversar sobre suas angústias, como parte de um programa de prevenção ao suicídio. Achenbach não elaborou nenhum método de atendimento e discorda, até hoje, dos que praticam a Filosofia com finalidades clínicas. Ele prefere usar a palavra “aconselhamento” em lugar de terapia. “O objetivo da filosofia prática (como define seu trabalho) é o de produzir o esclarecimento e uma auto-explicação satisfatória, e não a cura”, afirmou em 1997, numa palestra nos Estados Unidos.

Mesmo contra a vontade de seu fundador, a filosofia prática se espalhou rapidamente pela Europa e pela América do Norte - e passou a disputar pacientes com os psicoterapeutas. “A Psiquiatria e a Psicanálise fracassaram”, proclamou em entrevista ao The New York Times, o americano Lou Marinoff, presidente da principal associação de filósofos de aconselhamento nos Estados Unidos. A maioria de seus pacientes, contou, é constituída por “refugiados da psicoterapia”, alguns deles em busca de “verdades mais profundas” e outros, apenas procurando maneiras mais eficientes de combater a depressão e a ansiedade. Além do atendimento individual, um novo campo de atuação para os filósofos nos Estados Unidos e na Europa tem sido o do “aconselhamento ético” em empresas. Ao sair da torre de marfim das universidades, a Filosofia está conseguindo resolver ao menos um problema: o do desemprego entre os filósofos.