PLANETA (revista) ( novembro de 1997 )

  A Filosofia Clínica
  (matéria assinada pelo Dr. Sérgio Mortari)

"Até o século 17, cabia aos filósofos a pesquisa de respostas sobre os mais diversos assuntos como matemática, astronomia, biologia, física, química e psicologia. A partir dos trabalhos de Galileu é que se percebe a separação dessas matérias, passando cada qual a um departamento específico de estudo.

No entanto, enquanto cada ciência passou a cuidar de um saber único e pautado na realidade constatada, a Filosofia permaneceu genérica, porque seu objeto de estudo continuou sendo não só o que é mas o que deveria ser.

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Recordo-me que, há alguns anos, atendi um paciente com queixa de insônia; dormia mal à noite, revirava-se na cama e, por isso, passava o dia desanimado. Durante a consulta, soube que era marceneiro e adorava a profissão; fazia o que gostava, mas não estava satisfeito com a remuneração. Trabalhava numa empresa ganhando um bom salário, mas o móvel que fabricava era vendido pelo triplo do que recebia. Esse fato era injusto e o deixava insatisfeito, mas ele não sabia o que fazer; de tanto pensar a respeito, acabava dormindo mal. Sua doença não era do físico, mas da mente, da alma, e o "remédio" era aprender a refletir, a filosofar.

Como a Filosofia era matéria obrigatória durante o meu curso de medicina na PUC de Sorocaba, comecei a usar com ele meus conhecimentos filosóficos.

Conversei com meu paciente sobre os efeitos da Revolução Industrial, quando o trabalhador, que era senhor de sua produção e de seu lucro, passou a vender a sua mão-de-obra ao empresário em troca de um salário, para não morrer de fome.

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No caso desse paciente, o que aconteceu foi que, diante de uma tentativa de fazê-lo refletir, o que eu consegui foi alterar a sua filosofia de vida. As nossas opções diárias - como a escolha de uma profissão para ter sucesso social - são uma forma de "filosofar" tão espontânea que acabam compondo a nossa filosofia de vida.

Quando uma reflexão sobre um assunto é feita com método e em um consultório para diagnosticar doenças e estabelecer o tratamento (clínica) precisamos lembrar que a Filosofia é uma atitude que exige um pensar constante, ou seja, o amor à sabedoria. Nessas circunstâncias, as "doenças" a serem diagnosticadas e trabalhadas pela Filosofia Clínica serão as que tenham origem em juízos de valor, por exemplo. Como no caso que se discute hoje sobre a regulamentação do artigo 128 do Código Penal, onde não se pune o aborto praticado por médico em casos de mulheres que corram risco de vida em função da gravidez ou se foram estupradas e querem abortar. Não se trata de aprovar uma legislação que permita o aborto, mas sim de regulamentar um artigo do Código que data de 50 anos. Mas ainda assim surgem muitas questões: deve o médico fazer ou não fazer aborto? Em uma Santa Casa de Misericórdia deve-se permitir que se faça aborto? Um feto já é um ser humano quando ocorre a concepção? E o complexo de culpa do médico?

Do ponto de vista da ética ou filosofia moral temos dois aspectos aqui a serem considerados: o normativo, em que toda a manifestação de vida deve ser preservada, e o factual, segundo o qual uma criança fruto de um ato de violência será a eternização desse ato. Quer consideremos o aspecto normativo ou o factual desta ou de qualquer outra questão, a decisão deve ser embasada em um ato de vontade, que só pode ser pessoal e intransferível. Mesmo porque, quando tomamos uma decisão baseados na tradição, nos costumes religiosos ou no medo de reprovação da sociedade, estamos aceitando obedecer a uma norma que não é nossa.

Diante de exemplos como os aqui apresentados, parece ficar patente que, enquanto a Filosofia Clínica respeitar as suas limitações e cuidar dos problemas existenciais, deixando para a psicologia e para a psiquiatria a parte técnica, trará uma grande contribuição para a evolução do homem enquanto ser humano."