DIÁRIO DO NORDESTE – FORTALEZA
Entrevista publicada em março de 2001.

 

A Filosofia  Clínica existe há cinco anos no Brasil. Portanto, não é novidade,  mas apesar de se estabelecer  em  24 cidades e formar centenas de filósofos clínicos, ainda é vista com certa reticência pela chamada comunidade terapêutica brasileira. Como o senhor analisa isso?

Packter – Com os avanços da anatomia e da fisiologia, a medicina somente no século XIX constitui-se de fato em ciência experimental. Já a psicologia científica começa com Wilhelm Wundt e John  Watson, sendo, antes disso, quase um amontoado de especulações. E isso às portas do século XX. Em Filosofia Clínica essas mesmas concepções pré-científicas foram resolvidas já em Aristóteles, quando as concepções de Homero e Hesíodo, aquelas narrativas, mitos, caricaturas do que seriam mais tarde as reflexões, foram vencidas. Portanto, podemos considerar até que ponto são as reticências o produto de uma ignorância não assumida. Acredito que existe um processo natural de desenvolvimento que passa por estágios desde a implantação. A Filosofia Clínica está sendo a cada momento mais respeitada pelo trabalho que realiza. Na minha opinião a melhor atitude é a de um trabalho ético, bem fundamentado. Nunca houve unanimidade entre as escolas terapêuticas e não imagino que a Filosofia Clínica consiga isso.

A forma de  tratamento da Filosofia Clínica vem recebendo críticas severas dos conselhos de Psicologia e Psicanálise que afirmam temer que ela traga mais problemas que solução, que a nova  terapia filosófica pode mascarar sintomas. O que realmente diferencia o tratamento tradicional da Filosofia Clínica?

Packter – Não lidamos com sintomas sem a pesquisa profunda das causas. Seria como dar antitérmicos para debelar uma  febre negligenciando a infecção que a está causando; contraproducente e eticamente perigoso. Muitos dos meus colegas médicos, psiquiatras, psicanalistas e psicólogos têm se aproximado da Filosofia Clínica. Boa parte considera que a Filosofia Clínica possa trazer respostas pertinentes a temas intrincados, como a própria máscara do sintoma, que para o filósofo tem de fato outras propriedades. Isso porque às vezes mascarar o sintoma pode ser simplesmente a resposta a uma questão existencial. O que diferencia a Filosofia Clínica dos tratamentos tradicionais é o uso da historicidade, da lógica formal, da epistemologia e da fenomenologia como métodos e fundamentação. Isso implica na ausência de concepções de normalidade e patologia, de tipologias, de procedimentos clínicos a priori.  Também todos os escritos e os procedimentos derivam diretamente da Filosofia acadêmica.

No século XIX a loucura foi transformada pela Psiquiatria em doença mental. Para a Filosofia Clínica, o que pode ser  definido  como doença mental? Existe este conceito para o Filósofo Clínico?

Packter – Durante a Idade Média a loucura era tida como fato normal da vida habitual; na verdade, era também vista como manifestação benéfica ou maléfica dos céus. Mas com o Renascimento ela adquire a alcunha de patologia. Ainda que possível, acho realmente complexa a caracterização de manifestações subjetivas como sendo doenças mentais. Desde Foucault, em Histoire de la folie à l'âge classique,  isso não tem sido mais adequado. Ainda que Philippe Pinel tenha municiado, antes disso,  fôlego a discussão em seu Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale. Prefiro entender a “doença mental” como apenas mais uma manifestação existencial da pessoa. Assim, procuro entendê-la como ela se apresenta, em um fundo contexto de historicidade, para então interagir e colocá-la em um contexto de vida da pessoa. Na minha maneira de entender as coisas, o conceito de “doença mental” é avesso aos costumes hodiernos da Filosofia.

Mudando  de assunto. No que se refere a Filosofia Clínica e a Educação. Quais são os  novos parâmetros que ela traz para essa área?

Packter – Desde que o educador suíço Johann H. Pestalozzi pediu a generalização da instrução, a educação tem evoluído intensamente. Mas ainda que eu simpatize com alguns métodos, como o do médico Ovide Decroly, que se guiava pelo interesse da criança, ou o de Alexander S. Neill, em sua escola de Summerhill, o filósofo clínico procurará entender a maneira como a pessoa aprende algo, o que ela faz com esse aprendizado, o que isso interfere na existência dela, quais as conseqüências existenciais do ensino. Alguns filósofos anteriormente se ocuparam dessa questão, como Rousseau em O Emílio. A grande contribuição que a Filosofia Clínica pode trazer, inicialmente, à Educação diz respeito a levar a Educação ter uma interseção com a pessoa na qual seja respeitada essencialmente a subjetividade da pessoa. O gesso da fórmula pronta ruiu.

A análise de uma criança é diferente da de um adulto na Filosofia Clínica?

Packter – Há diferenças fundamentais. O filósofo faz a historicidade da criança através daqueles que são mais próximos a ela. Através então dos aspectos éticos, epistemológicos, axiológicos, semióticos e outros mais apresentados, o filósofo tem a chance de um contato mais demorado com a criança. Quase sempre a versão das pessoas que convivem de perto com a criança tem pouco a ver com a subjetividade dela. Por isso, faz-se necessário um ajuste posterior por parte do filósofo.

Que benefícios a Filosofia Clínica com crianças e adolescentes pode trazer, por exemplo, nos casos de drogas?

Packter – Nesses casos, a primeira providência é a desintoxicação hospitalar. O atendimento do filósofo será concomitante ou posterior ao atendimento médico. Cabe à Filosofia Clínica pesquisar então desde o uso da droga até as condições que permitiram sua aparição e desenvolvimento na vida da pessoa. A droga, como qualquer outra coisa, deve ser entendida no contexto atual e histórico na vida da pessoa.

Com adultos, em casos de fobias, distúrbio da sexualidade, depressão?

Packter – As manifestações que trazem a pessoa ao consultório, como fobias, uma vez contextualizadas, mostram a identidade, a natureza e as propriedades de suas constituições. Ao constatar que no pânico que a pessoa possui ao estar em público, como ele se originou, como se manifesta, como se desenvolve, os caracteres que o sustentam e perpetuam, o filósofo pode providenciar ações junto à pessoa para atenuar, explicar, extirpar o pânico; mas isso varia conforme as variáveis envolvidas. Às vezes uma fobia é necessária para evitar um dano maior, às vezes uma depressão é necessária como resgate de certos conteúdos que de outra forma não teriam remissão.

  Na prática, a Filosofia Clínica pode  traçar o perfil da personalidade humana a partir de um dado universal? Como por exemplo, dizer que a mulher de hoje busca sua independência, seu próprio caminho?

Packter – Existe uma lição em Lógica que serve bem como exemplo aqui: quanto maior é a ex te nsão menor é a compreensão. Evidentemente, se eu digo que a mulher de hoje busca sua independência, estarei deixando milhões de mulheres fora do meu entendimento. Os conceitos universais, fortes em Hegel, encontram debilidade na clínica; melhores ficam os conceitos singulares, de Kierkegaard. Assim, uma determinada mulher pode querer a liberdade, enquanto outra, imediatamente ao lado, a ignora placidamente.

Como se dá a Ética na Filosofia Clínica, se o mundo é a representação de cada um?

Packter – Ethikós: a ética subjetiva deve procurar uma interseção ao menos razoável com a éti ca objetiva, consensual, como maneira de se poder conviver no mundo. Deste modo, ainda que longe de um princípio de bem-estar, o estado de interseção entre o que eu penso e o que o outro pensa sofre constantes modificações, conforme a contingência daquilo que é vivido. O filósofo também obedece a uma ética social, como cidadão, que pouco às vezes lhe diz em sua ética subjetiva. As relações aqui não costumam ser calmas.

Segundo Umberto Eco, “quando o outro entra em cena, nasce a Ética”. Na Filosofia Clínica, é  possível ser bom cada um a sua maneira, sem com isso ameaçar  a vida do outro?

Packter – De certa forma vivemos um pouco o Zaratustra de Nietzsche, o que está longe de assegurar uma paz aos outros. Talvez hoje esteja evidente o quanto oscilamos entre a moral fechada (conservadora, baseada no hábito) e a moral aberta (fundada na emoção e no instinto), conceitos de Bergson. Kant, na questão do comportamento moral, procura a paz no dogma do "dever ser". E Hegel não apazigua ao diferenciar a moralidade subjetiva (consciência do dever) da moralidade objetiva ou eticidade (aparece nas normas e leis). O filósofo clínico constata que muitas vezes ao ser “bom” o indivíduo coloca em risco a vida do outro, que ironicamente também pode estar agindo da mesma maneira.

Como um filósofo clínico pode lidar com a morte?

Packter - Para Heidegger, a morte é a última possibilidade do homem. O ser-para-a-morte é o verdadeiro destino e objetivo da existência humana. Essa idéia é muito corriqueira hoje em boa parte dos filósofos. Mas, de minha parte, acho-a tão poética e improvável quanto a poesia simbolista e intimista de Alphonsus de Guimarães, poeta intimista, acometido eternamente pelo sentimento da morte. Na clínica, constato que há pessoas que não têm a morte em suas vidas; outras, destroem a morte simplesmente vivendo. Algumas pessoas não sabem da morte até que sejam avisadas por um filósofo. E enfim, existe um mar de entendimentos sobre isso. Como filósofo, estou interessado na verdade da pessoa, que não é necessariamente a verdade de Heidegger. A Filosofia Clínica poderá mostrar à pessoa um modo único e próprio de lidar com isso: através das concepções dela mesma, da pessoa.

     As psicoterapias  encontram na arte ( arte-terapia, psicodrama, teatro espontâneo, etc)  procedimentos para trabalhar questões existenciais. De que maneira a Filosofia Clínica procede diante da arte?

  Packter – Bem, acho que, de um modo geral, somente no século XIX a palavra “arte” começou a ser aplicada muito mais à criação estética. Porque desde o Renascimento o conceito derivou para coisas que pouco tinham a ver com o assunto. Mas quando vejo gente como Paul Klee e Kandinski fico pensando na desconstrução do conceito outra vez. Pois, quando o filósofo clínico pesquisa a estrutura do pensamento da pessoa, ele descobre que a arte pode ser utilizada como instrumento de elaboração de vivências, de negação ou destruição, de conformação, de adequação. Nesse sentido, há dadaísmos existenciais. Muitos são cubistas, impressionistas e nem sequer imaginam. No entanto, é também grotesco usar a arte como  panacéia. Muitos não querem, não gostam, não admitem. É claro que podemos aventar a possibilidade de que é assim que fazem então sua arte: por negação.

A  Filosofia Clínica traz uma ideologia?

Packter – Tomemos o conceito de ideologia utilizado por Marx, ao invés daquele empregado por filósofos durante a Idade Média. Em Marx, ideologia é um conjunto de idéias e conceitos relacionado aos interesses de uma classe social, mas não necessariamente seguido  por seus membros. Penso que qualquer coisa ensinada traz em si mesma uma ideologia. Assim também é com a Filosofia Clínica.

Com relação aos planos de saúde. Qual a perspectiva deles passarem a oferecer a Filosofia Clínica a seus usuários?  Haveria necessidade de os usuários solicitarem a celebração de convênios?

Packter – Os planos de saúde em breve poderão oferecer o atendimento que os filósofos clínicos prestam. Em todo o país os convênios com Universidades, associações, sindicatos têm sido crescentes nos últimos anos.

A Filosofia Clínica nasceu, cresceu, enfrentou barreiras e está aí já no III Encontro Nacional de Filósofos Clínicos, evento  que será realizado no Ceará, numa terra tão distante dos grandes centros filosóficos do mundo. Por quê trazer o evento para cá?

Packter – No término do II Encontro Nacional, acontecido no ano passado em Belo Horizonte, centenas de filósofos de muitos estados votaram na cidade que abrigaria o encontro seguinte. Com uma grande maioria dos votos, venceu Fortaleza.