REVISTA  ÚNICA  - EDITORA GLOBO

TEXTO: LAVÍNIA FÁVERO

NO  DIVà DO  FILÓSOFO

                         

   Mais associados a ambientes universitários e discussões sobre textos e autores difíceis, os filósofos também podem enveredar por um caminho mais prático: tratar da alma.

   Esses profissionais se denominam “filósofos clínicos ”e têm um método de trabalho mais rápido e econômico do que o da psicologia e da psicanálise. A média do tratamento é de seis a oito meses, e o preço da consulta gira em torno dos R$ 50 ( contra os pelo menos R$ 80 dos tratamentos tradicionais).

   Filósofos clínicos trabalham com dados conscientes do analisado. Não procuram sentimentos e complexos escondidos no inconsciente . Não  pedem para que o interessado fale dos pais nem tratam quem os procura por “paciente”. Preferem a denominação de “participantes”, porque dizem não partir do princípio de que existam comportamentos “normais” e “patológicos”.

 

Conselhos pagos

   O movimento de levar a filosofia para além dos bancos acadêmicos começou em 1981 na Alemanha, por obra do filósofo Gerd Achenbach. A novidade chegou ao Brasil por meio do gaúcho Lúcio Packter, 38 anos. Nos anos 80, ele viu, na Holanda, o exemplo de filósofos que colocavam plaquinhas na porta dizendo “Prática Filosófica” e davam conselhos para quem pagasse.

   “Voltei para o Brasil; com a idéia de fazer algo parecido. Tive contato com a filosofia desde a infância, porque, na minha família, fazíamos muitos saraus filosóficos. Comecei a pesquisar e cheguei ao termo “Filosofia Clínica”, conta. A idéia era montar um instituto que, além de aconselhar pessoas, treinasse filósofos interessados num trabalho prático.

   “Só que, nessa andança toda, eu tinha esquecido de um detalhe: não era formado em filosofia. Tive que voltar à faculdade e fazer a graduação. No mesmo dia em que me formei, abri o Instituto Packter em Porto Alegre”.

   Seu método consiste em averiguar, num período de seis a oito meses, a história de vida da pessoa ( que ele chama de “historicidade”) ano a ano. A partir disso, monta “a estrutura de pensamento” do indivíduo, baseando-se em 30 tópicos que ele mesmo desenvolveu, como a visão de mundo, emoções, crenças e a maneira que ela tem de se comunicar.

   Analisa qual o tópico mais importante para a pessoa, e se existem choques entre os tópicos. O tratamento consiste em incentivar que a pessoa valoriza o que é importante para ela.

   “Para cada pessoa temos um procedimento, não é como a psicanálise, que tem um esquema pronto e não leva em conta o indivíduo. Se a pessoa gosta de escrever ou pintar, peço para ela fazer isso” , diz Packter.

   Packter diz que é possível alguém não ter amor-próprio e, mesmo assim, viver bem, se outras coisas forem mais importantes para ela. “Um psicanalista precisaria de terapia para entender como isso é possível, mas tenho casos documentados de pessoas que não se aceitam e são felizes. Aí é que está a revolução da filosofia clínica: aceitar cada indivíduo como ele é”.

 

Risco no diagnóstico

   Para o  filósofo e psicanalista Ernildo Stein professor da PUC do Rio Grande do Sul, a proposta de Packter até é interessante, mas ele acha que os filósofos clínicos podem pôr em risco a saúde de pacientes mais graves . “Eles dizem que não tratam de pessoas com neuroses sérias ou problemas psiquiátricos ,mas a verdade é que eles não têm condições técnicas de diagnosticar esses casos. A filosofia não fornece esse tipo de instrumento”.

   Para ser um filósofo clínico, basta ser formado em filosofia por alguma instituição reconhecida pelo MEC e Cultura e fazer o curso de Packter, que dura dois anos. Só em São Paulo, eles são mais de 120. Além do Instituto Packter, em Porto Alegre, há centros em São Paulo, Campinas, Brasília, Curitiba e  outras 13 cidades.

  “ Cobro R$ 3 por consulta, e dôo para uma instituição. Não preciso trabalhar para viver, minha família sustenta o instituto”, diz Packter . Nem todos os filósofos clínicos fazem caridade, mas costumam cobrar menos que psicólogos e psicanalistas.

   Faz parte do método da psicanálise cobrar uma taxa considerável dos pacientes, supondo que o esforço para pagar o tratamento seja proporcional ao de atingir resultados positivos no decorrer das consultas.

   “É claro que não é preciso cobrar uma exorbitância, mas que esforço um pessoa vai pôr no seu tratamento se pagar o mesmo que um maço de cigarros por ele? “, questiona Stein. Só que, muitas vezes, os preços são proibitivos, e muitas pessoas desistem  de se tratar porque não podem pagar.

 

 

Colcha de retalhos

   E onde entra a filosofia nesse trabalho? De acordo com Packter, ela está na elaboração de seu método. “Tive que conhecer várias escolas filosóficas para poder chegar aos 30 tópicos. Tem um pouco de cada uma no meu método, que é um grande caleidoscópio, uma colcha de retalhos filosóficas”, explica .

   Ele conta que, no tratamento, raramente são citados autores. A orientação dos filósofos clínicos é mais prática, centrada no cotidiano. “Essa coisa de citar filósofos no consultório é mais ficção que realidade. Nunca vi uma pessoa me procurar para resolver questões metafísicas, saber por que existem as estrelas”, explica Packter.

   Lou Marinoff, conselheiro filosófico nos Estados Unidos e presidente da APPA ( American Philosophical Practioneers Association, Associação Americana de Práticos Filosóficos), também propõe a filosofia como tratamento alternativo.

   Como Packter, diz não que “não trata pacientes, mas os ajuda a explorar suas crenças”. O foco da terapia de Marinoff não é nas emoções suscitadas pelos acontecimentos, mas na visão que as pessoas que o procuram têm deles. “Se você pode mudar sua visão das coisas, pode mudar o efeito emocional que elas têm sobre você. E a filosofia pode dar essa orientação,” diz.

   Em seu “Mais Platão, Menos Prozac”, livro que Marinoff define como um trabalho de auto- ajuda filosófica, lançado no Brasil pela Editora Record, ele relata  casos em que as citações filosóficas ajudaram a resolver problemas que vão de ter um marido repressor a um chefe que desmerece seu trabalho.

   No quarto capítulo do livro, oferece um “curso rápido” de filosofia aos leitores, recomendando que o leitor pule essa parte e passe para o capítulo prático – a menos que esteja convidado para alguma reunião social em que impressionar culturalmente seja útil.

   Quando perguntado sobre o porquê de sua restrição à leitura, Marinoff respondeu com irritação: “Filosofia significa amor pela  sabedoria”, não ter um  monte de livros, ou repetir o que todo mundo disse. Conheço pessoas sábias que lêem pouco e pessoas tolas que lêem muito. Você não precisa de um PhD para pensar por si mesmo”.

   “Mais Platão, Menos Prozac” tem uma lista de indicações de leitura, onde se encontram interpretações duvidosas como “infelizmente, Hegel também influenciou Marx e Engels, e se tornou um apologista involuntários das doutrinas totalitárias”.

   Aos críticos de sua posição em relação à filosofia, Marinoff responde que está “provendo um serviço cuja demanda está crescendo. A APPA formou, nos últimos 18 meses, mais de 100 práticos.

   O filósofo e psicoterapeuta Victor Stirnimann usa a filosofia como um complemento na sua prática clínica. Ele segue a linha junguiana ( de Karl Jung), que traz paralelos de contextos que não a psicologia para iluminar as questões do paciente. “A psicologia junguiana acredita num procedimento de amplificação, de que existe uma base comum a toda cultura humana”, explica. Nesse sentido, usar a filosofia é tão útil quanto um exemplo do cinema ou da novela.

   “Acho que as questões das pessoas são universais, e quem leu filosofia e literatura tem acervo maior de perspectivas para entender o cliente”, diz . Mas, para ele, a filosofia que pode servir num trabalho de análise não é acadêmica, ainda que se baseie nos mesmos autores. Por isso, vê com simpatia iniciativas como a de Lúcio Packter. “Acho válido, porque é uma tentativa de divulgação, como a daquele escritor, Alain de Botton, que faz uma literatura de auto- ajuda de bom nível. Na minha opinião, essas tentativas são sempre úteis, desde que sirvam para despertar o questionamento por parte das pessoas”, avalia.

 Divulgação  x  banalização

   A filósofa Scarlett Marton, professora do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo e especialista em Nietzsche, vê uma demanda crescente pela filosofia fora do ambiente acad6emico.

   “Há uma necessidade que se reflete em conferências, cursos e cafés filosóficos. As pessoas querem ouvir uma fala que não a do dia – a – dia delas. Acho que nós, que trabalhamos filosofia, devemos estabelecer esse tipo de diálogo, porque a filosofia se fala em várias  línguas. É possível fazer um trabalho sério tanto dentro quanto fora da academia”.

   O único problema, segundo Scarlett, é que, às vezes, a divulgação acaba se tornando banalização. Na tentativa de tornar um autor  filosófico mais  “acessível”, acabam –se  confundindo conceitos e reforçando  clichês.

   “Já resenhei livros de divulgação que eram péssimos, não por que eram para iniciantes, mas por que eram feitos às pressas. Já vi um livro sobre Nietzsche em quadrinhos que era excelente, que os autores realmente conseguiram passar conceitos fundamentais de maneira leve e bem –humorada,” conta.

   Para Scarlett, de qualquer maneira, filosofia nada tem a ver com auto- ajuda. Ela é útil não porque fornece receitas de como obter sucesso, ficar rico ou fazer amigos. Sua utilidade está em pôr uma pulga atrás da orelha de quem a procura.

   “A filosofia permite, que, de vez em quando, a gente faça a limpeza do terreno em relação a idéias, valores e crenças que podem não estar mais no servindo. Ela nos ensina a ler nas entrelinhas, a não aderir prontamente ao que aparece nem refutar prontamente. A atitude filosófica é de questionamento. A partir daí, até a leitura do jornal pode ficar mais instigante.